terça-feira, 18 de janeiro de 2011

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A morte não tem pressa e nem é urgente. Sabe ela que tudo tem sua hora e que ninguém morre de véspera.
Mas meu pai quis ir logo. A morte se sentiu um pouco sem graça de alguém afrontá-la daquela forma, mas, não discutiu e aceitou o pedido dele.
É que a morte percebeu que era um sacrifício, um de amor, algo grande mesmo. Ela percebeu que ele queria ir para que seu filho pudesse começar a conhecê-lo; coisa que com ele vivo seria impossível, já que ele teimava em se esconder sem querer.
A morte levou o pedido do meu pai bem a sério, e percebeu, já faz um tempo, que no fundo, no fundo, estava na hora dele ir.

Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar

Seu Olhar

Seu Olhar

Foi na madugrada fria
que reparei:
do incêndio, da alegria,
eu já não sei.

Madrugada, ainda há fumaça,
cinzas no ar-
e um vazio no seu olhar!

Madrugada, e em todo canto
mostra-se a dor:
essa luz que invade a sala
é o fim do amor.

Madrugada, e, mesmo agora,
queria ver
o segredo que eu sabia
ver em você

Esse espelho que não quebra,
pra nosso azar,
só guardou a madrugada
desse lugar

Sei da hora, é madrugada
mas quis cantar
o abandono, o silêncio
do seu olhar.

Luiz Henrique da Costa

Queria

Queria

Queria que você quisesse,
que você tivesse aquilo que me falta;
queria a alegria e o fogo,
na cama, no corte dessa noite alta.

Mas você não tem, nem quer,
meu bem, meu mal-me-quer,
você não quer, não tem.

Chega a madrugada
e eu volto ao mesmo dia,
aqui, nesse lugar:
tudo vazio no seu olhar

Tua fome não sacia a minha fome,
Tua boca ficou fria.
Queria que a minha sede fosse a tua
e a tua febre fosse a minha

Mas você não quer comer,
você não quer beber,
prefere ficar sem;
não, você não quer suar,
você não quer se dar,
você não quer ninguém.

Queri que você ficasse,
que você se fosse, de uma vez, para sempre.
Vocênão fica e não vai,
não desocupa a moita,
mas não me quer mais.

E se você não quer, não tem;
eu quero outro alguém:
o amor é coisa urgente.
Se você não me quer mais, se afaste,
que pra mim já deu,
pra mim, agora, basta.


Luiz Henrique da Costa

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Da cadeira de balanço, ela, toda velha, observou o primeiro raio de sol se esconder por trás da cortina puída. Vendo isso, olhou para o lado e percebeu que seu jasmim estava morrendo junto com ela. Estava na hora.
Papai sempre foi muito difícil. Uma dificuldade desconhecida, daquelas que pesquisadores ainda não conseguem entender. O ser-difícil dele foi transformando as pessoas que viviam junto dele, principalmente a pessoa que me pertence. Depois que conheci meu pai, como pai, decidi que não queria mais ter uma figura paterna; e esse desejo não se fazia por conta de castigos absurdos ou opiniões contraditórias, mas se fez pelo fato de que, na minha cabeça, filho não deve ter medo de pai. Eu tinha.
O medo que sentia do meu pai era algo grande, maior que o próprio Luiz. Nunca consegui superar aquele medo, só substituí por uma raiva. A raiva foi crescendo dentro de mim com o passar da poeira, veio lenta de início e quando eu percebi ela já tinha sobrepujado a grandeza do medo.
A raiva me fez viver um pai por obrigações: Ligava por obrigação, elogiava por obrigação, tudo me era obrigado, nada por prazer. Eu entendia que ele tinha lá seus problemas, mas ao invés de ajudar eu preferi viver por mais um tempo com a minha raiva, minha dor, meu medo, meu rancor...
De alguma forma papai criou uma ligação entre nós, mesmo deixando claro que eu era o menos querido. Essa ligação me fez perceber, e na hora certa, que estava chegando o momento em que ele precisaria partir para o Nosso Lar, debaixo da terra, Céu, Inferno, Paraíso, Nirvana, ou qualquer lugar do gênero. Eu sabia que ele tinha que morrer, tava na hora mesmo, senti com a mesma certeza que sinto que irei morrer antes de minha mãe.
Não entendo ainda a morte de papai, é complicado porque a diferença entre a distância dele e a morte são poucas. Ele sempre foi um pai de outro mundo, nunca próximo. Seu morrer só concretizou sua lonjura.
Depois que ele morreu não senti culpa, nem a raiva, nem o medo, nem mais nada. Só entendi que crescia uma pena enorme dentro de mim, uma pena boa, uma pena que iria consolar papai onde quer que ele fosse. A pena já deve estar com ele a essa altura...
Felicidade eu realmente só encontrei em horinhas que ele se descuidava, quando vivo; porque hoje sinto uma felicidade libertadora quase que culpada, por ter sido conquistada após a morte do meu quase e inteiro pai.
Já chorei tudo que tinha de chorar por todos os envolvidos no crime limpo suicída que foi a morte de papai. Já chorei demais. Agora só resolvi ficar cansado de sentir raiva ou medo das pessoas, é que realmente cansa. Agora a gente perdoa os erros e principalmente os acertos. Só entendi essa questão do perdão como substituição dos sentimentos que cansam, depois que soube que meu pai morreu sentindo orgulho de mim. Em sua última leitura, papai lia um artigo meu, só meu. Não conseguiu ler tudo e pediu para o irmão ler enquanto ele chorava de felicidade para esquecer a dor. O orgulho que eu sempre desejei ter no meio da minha imensa raiva, só veio depois de sua morte.
É que apesar dos pesares, por tudo que meu pai foi e fez, eu sempre quis, e continuo querendo, ser tão genial quanto ele. É que saber ser-difícil é coisa dos grandes...