quarta-feira, 31 de março de 2010

A confraria



Eu lembro que quando começaram as reuniões da confraria na casa da Thereza, minha mãe não me deixava assistir. Nunca entendi por que, já que ela alegava um motivo diferente a cada dia que eu implorava para ir: "Ai, Camilo, você não vai entender nada.", "Ai, Camilo, você vai falar besteira e vai atrapalhar", "Ai, Camilo, você vai querer vir embora.". De tanto ouvir "Ai Camilo..." acabei me conformando com as proibições e guardei o meu desejo.
A confraria sempre me pareceu uma seita secreta onde mulheres se reuniam pra falar de literatura. Algo bem como ABL mesmo. E foi logo após a morte de uma das confreiras que eu comecei a forçar a minha participação na seita. Não fui iniciado nas palavras e nem passei pelos ritos de escrita que elas passaram para entrar, comecei como xereta mesmo, como intruso. No fim elas viram que não tinha mais jeito e que eu não ia sair de lá...acabei ficando.
Não sou um confreiro e nem escrevo na confraria mas eu me divirto vendo aquelas mulheres falando com gosto do que leem, rindo do que é ridiculo, discutindo em defesa da palavra. Acho bonito, só.
Talvez se eu não tivesse gostado do que os meus pais me mostraram como bom eu não veria tanta beleza naquele grupo. Porque parece que todo dia nasce uma coisa nova ali na mesa, parece que o lápis ou o computador suga todas as ideias e brincadeiras que correm na cabeça dessas confreiras, e pra mim não tem como não ver beleza nisso.
Não sei porque teimo em permanecer assistindo as reuniões da confraria já que não consigo traduzir o real em palavras como elas. Mas talvez o gosto que eu peguei pela pavra escrita, cantada e falada tenha me prendido ali no meio das quatro.
Depois da paixão pelas palavras veio a paixão pelas quatro meninas. Também, seria quase impossível não me divertir com as histórias engraçadas da Mariana, com as palhaçadas da Vera, com as palavras caprichosas da Fernanda, com a cultura assustadora da Célia e com a revolução que minha mãe provoca. Uma revolução literária que começa dentro da gente, fazendo com que comecemos uma briga com aquilo que lemos e escrevemos, nos tornando mais chatos, fazendo passeatas contra os maus tratos à palavra e pondo no paredão todos aqueles que fingem ser maiores que a literatura. Uma revolução que todas ali fazem parte, uma revolução que aprendi no berço e que me tornou um militante junto à minha mãe. Eu me orgulho disso.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Solidão apavora

Digo por muitas vezes que "Sozinho" já me irritou e que não suporto mais ouvir a música e nem aqueles que dizem que ela é do Caetano. Mas eu preciso contar um segredo: Ainda ouço "Sozinho" e vivo "Sozinho" como nunca vivi nenhuma outra música. Talvez a música realmente seja cafona e não tenha nada demais perto das outras, mas nenhuma é tão verdadeira e sozinha como essa.
Acho que não precisa ser noite pra eu pensar em nós dois só precisa ter silêncio, aquele silêncio cruel que espera na porta todas as suas ideias e assuntos sairem para ele poder entrar sem pedir licença e baguncar tudo. Aí eu penso em nós dois, como na música.
Se de alguma forma o trecho " Teu cabelo preto/ Explícito objeto/ Castanhos lábios/ Ou pra ser exato/ Lábios cor de açaí" se misturasse à música "Sozinho" aí essa música seria feita para mim, só para mim. Porque só eu pensei nisso, só eu descobri isso, só eu me sinto assim...pelo menos agora. Não sei o tamanho da raiva que tenho de mim por sentir isso, só sei que é grande.
Gostaria de chegar pra você e perguntar: "Por que você me esquece e some? Por que você não cola em mim? To me sentindo muito sozinho". Mas acho que essas frases são ousadas o suficiente pra existirem só na música, por isso não pergunto.
Quando eu tiver coragem de enfrentar "o antes, o agora e o depois" eu vou juntá-los pra ver se assim eu fico menos "Sozinho", e se assim você conta "Onde está você agora?".

A casa de dona Cândida




Era sempre a mesma coisa na casa de dona Cândida, de manhã cedo era para todos estarem acordados. Fazia questão de bater panela na porta do meu quarto. “Acorda seu vagabundo! Na minha casa tem que obedecer as minhas regras ouviu?”. Já fazia um tempo que eu resolvera ignorar os ataques da dona Cândida, afinal, ela já estava velha, era normal ficar chata e implicante.
Já fazia dois anos que eu alugava aquele quartinho da velha, não agüentava mais aquele inferno, sorte que eu era paciente. Meus amigos sempre falavam: “Velha tem que morrer em asilo, não sei por que você ainda agüenta.” Talvez fosse por pena ou por preguiça mesmo, nunca fui de fazer escândalos. Até mesmo porque, o quartinho era jeitosinho e tinha uma circulação de ar boa, não tinha muito para reclamar. Só as vezes que apareciam umas infiltrações, mas mesmo resmungando muito, dona Cândida consertava.
Levantei quase meio dia com o escândalo da velha e passei por ela ignorando os ataques e o olhar mal humorado. Fui fazer meu café. Depois de tomar um pouco de café saí, com a velha ainda no meu ouvido, e fui procurar algum emprego. Conseguia enganar dona Cândida dizendo que era empregado, afinal eu sempre tinha dinheiro para pagar o aluguel, nunca atrasei. É que tinha o dinheiro da herança né? Como eu quase não gastava, ainda dava para agüentar um pouquinho mais. Pedro só reclamava “Porra com o dinheiro dessa herança você podia alugar um apartamento para você. Porque ainda mora com essa velha?” Nunca soube responder, talvez fosse por pena, ou por preguiça mesmo.
Andei por horas na rua procurando alguém que se atrevesse a me empregar... Nada. Voltei para casa já era um pouco tarde, e dona Cândida estava vendo novela na sala. Entrei sem fazer barulho e fui direto pro meu quarto. Não se podia fazer barulho na hora da novela. Nunca. Comi uma banana e tomei um copo do suco da Cândida, mesmo que ela se irritasse depois.
Fui deitar e sem conseguir dormir comecei a olhar pro teto, imaginando as coisas que eu poderia ter, mas que nem fazia força para tê-las. Nunca fui muito ambicioso, sempre ficava contente com o que eu tinha e nunca fui de reclamar. Desde criança que os outros brigam comigo e se aproveitam de mim, nunca liguei muito, não me importava mesmo.
Acordei mais feliz do que nunca naquele dia. Não sabia o porquê daquilo. Não conseguia nem mesmo pensar nos gritos de dona Cândida. Estava muito feliz naquela manhã. “Que sorriso bobo é esse seu merda? Ta achando que pode rir da minha cara assim é? Pois vá tentando. Um dia ainda te ponho pra fora seu vagabundo.” Eu simplesmente ignorava toda a gritaria e o escândalo. Cheguei à cozinha com a velha atrás de mim ainda aos berros. Olhei ao meu redor procurando o filtro para fazer café. Sempre sorrindo, sem nem olhar para Cândida. Talvez isso deixasse a velha um pouco mais nervosa, talvez fosse por isso que ela gritava tanto naquele dia.
Não achei o café e acabei esbarrando em uma faca. Olhei para aquela faca de prata brilhante, bonita. Peguei a faca e fiquei olhando por um momento, sempre com um sorriso na cara e gritaria atrás. Virei para dona Cândida, dei “bom dia” e afundei a faca com gosto no seu coração. Afundei a faca da mesma forma que afundamos em uma manga suculenta, afundei com vontade. Depois que os gritos pararam e a velha fechou os olhos de vez, eu lavei minhas mãos, achei o filtro e fui fazer meu café.
Até hoje não sei por que demorei tanto para matar a pobre dona Cândida. Talvez fosse por pena ou por preguiça mesmo.

E Chiove




Chovia, chovia muito, a única coisa que poderia me abrigar ali, era uma marquise formada por calhas comidas pelo tempo. Dessas calhas a chuva escorria, mas não da forma brutal que escorria do céu, e sim de uma maneira mais lenta, mais calma, mais bonita. Quase me perdi no brilho de cada gota que cismava em cair das calhas, como se elas quisessem mostrar um pedaço da minha vida em seu brilho, como se quisessem disputar, para ver qual gota era a mais bonita, a mais brilhante.
Desviei lentamente meu olhar das gotas competidoras, eu sentia que ainda queria vê-las, mas não podia, precisava voltar a fitar a linha do trem, para ver se aquele trem, especialmente aquele trem, iria voltar.
Ah! Como era linda a ferrugem dos trilhos, como me fazia sorrir aquela ferrugem doce que o tempo construiu tão minuciosamente; era lindo.
No momento em que olhava para a grama do outro lado da linha, vi naquele instante, um pequeno garoto, descalço, só de short, correndo de mãos dadas com um menino em uma tarde linda, que quase explodia com a felicidade dos garotos. O garoto menor, era eu e o maior era ele. Nós corríamos feitos loucos naquela época, como se nada, nada mesmo pudesse nos parar ou atingir. Mas nunca desgrudávamos as nossas mãos, eu acho até hoje que a magia da nossa correria estava na junção de nossos dedos, na mistura do suor, nos apertões involuntários na palma do outro.
Uma gota surgiu em baixo de meu olho, não sei se era uma lágrima ou se era uma gota vencedora da disputa pela lembrança melhor. Sei que pouco me importei com a presença úmida do corpo estranho e continuei fitando as minha memórias se desenharem na grama, na linha, na plataforma, no chão.
Continuei ali, rindo à beça, sozinho; eu, minhas lembranças e a chuva. Foi ai que voltou o que eu torcia para não voltar. Voltou rasgando, matando e socando, aquela lembrança de quando ele precisou ir embora, de quando ele subiu no trem, de quando ele, jovem, dizia que iria voltar, assim que terminasse tudo, só para poder me ver, para poder correr comigo, para poder me bater, para poder gritar comigo, para nos sujarmos.
Naquele instante em que ele subiu no trem, ele beijou a minha mão e sussurrou algo que hoje eu traduzo como: Eu te amo. Mas tanto faz, isso já faz tanto tempo não é? Deve fazer dois meses, um ano, dois, talvez trinta. Não importa, o que importa é que eu, passo todos os dias por aqui, para ver os garotos correndo, para ver o sol nascer, para ver as pessoas embarcando, para ver as flores nascendo, para ver as gotas disputando, para ver minhas lágrimas, para ver a grama, a linha, a plataforma; simplesmente para ver se assim, só assim, ele volta para mim.

domingo, 14 de março de 2010

“Pagando bem que mal tem?”

Sinto uma enorme necessidade em discutir esse assunto sempre que posso. E acho que mesmo que o assunto se apresente como uma besteira creio que a importância de uma discussão como essa, é enorme.

No mundo de hoje ficamos perdidos no meio de milhões de informações e muitas vezes não temos tempo para analisar e digerir a bateria de novidades que recebemos todo dia. E é aí que mora o problema. Ouvimos música, lemos artigos, assistimos espetáculos. E tudo isso que fazemos se torna tão descartável que no dia seguinte já estamos fazendo o mesmo circuito. E nessa correria não paramos para pensar se o que ouvimos, lemos ou assistimos é bom. Será que perdemos o nosso senso crítico?

As coisas ficaram mais difíceis de serem classificadas como boas ou ruins. Os artistas e outros “fabricantes” de informação já não se importam mais em produzir o que eles acham bom, o que eles acham que o povo precisa. A produção hoje é voltada para o que a maioria quer, e o que ela quer dá dinheiro, muito dinheiro.

Claro que existem artistas que realmente só conseguem produzir besteiras e não enganam ninguém, são o que eles são; uma droga, mas são. Mas e os que sabem das coisas? E aqueles que são inteligentes e produzem pelo dinheiro? O que é melhor? Fazer o que gosta e correr o risco de não ganhar dinheiro, ou fazer o que se pede e ganhar muito dinheiro?

Será que não é muito estranho sairmos de um período tão maravilhoso como a Tropicália, que lutava pela liberdade de expressão e pela inovação da arte?

Prêmio jabuti, Oscar, Prêmio Barco a vapor, Academia Brasileira de Letras, Prêmio Marcantonio Vilaça, Prêmio Molière. Será que todos esses prêmios e prestígios estão sendo destinados às pessoas que realmente merecem recebê-los?



Imaginário religioso


O Brasil é um país com uma enorme diversidade cultural. E mesmo com a grande quantidade de preconceitos, as crenças e as tradições populares continuam vivas. Dividimos o espaço com a Umbanda, o Candomblé, o Catolicismo, o Judaísmo, e muitas outras religiões que colorem a nossa bandeira. Mas e o que fazemos com as simpatias, lendas e mitos do nosso povo? Será que isso não faz parte da crença do nosso povo, tanto quanto as religiões?

Porque aí entra uma questão complicada, que seria a definição de uma religião. Não se pode dizer que para ser religião é necessário um grande número de praticantes, porque o Rastafári é algo pouco conhecido mas não deixa de ser considerado como religião. Também não podemos dizer que uma religião precisa de um guia e/ou um livro sagrado, já que na Umbanda e no Candomblé não tem nada disso. O que define a prática de uma crença como religião?


No filme “Estamira” eu ouvi uma frase maravilhosa que diz: “Tudo que é imaginário, tem, existe, é”. E é interessante pensar por esse lado: Será que todo imaginário popular tem um fundo de verdade? Sim, porque seria muita arrogância dizer que lobisomens, sacis e curupiras não existem, só pelo fato de não termos visto. Porque também não vimos Deus, não vimos Oxalá, nem Durga, nem qualquer outra entidade existente nas religiões. E mesmo assim o povo acredita em tudo isso, e faz suas oferendas, promessas, rezas, da mesma forma que uma senhora que acredita em saci faz as suas simpatias. Ser chamado de imaginário popular, e não de religião, desmerece de alguma forma certas crenças?
"Americanos representam grande parte da alegria existente neste mundo".


Certa vez Caetano disse que “Americanos representam grande parte da alegria existente neste mundo”. Talvez seja verdade, talvez os americanos tenham chegado em um ponto tão alto de poder, que representam toda, ou grande parte, da alegria mundial.

No cotidiano vemos muitos imitando o estilo de vida norte americano. Isso se tornou algo tão marcante que às vezes fico um pouco espantado. Não me coloco aqui na posição de analisar o que é bom ou ruim. Mas quem pode dizer que conhece mesmo a cultura brasileira? Sim, porque sempre que vamos às festas, ouvimos na maior parte do tempo músicas americanas, junto de gente que fala inglês sem nem falar português direito. É claro que é um gosto generalizado esse apresentado, mas é sobre ele que quero falar. Afinal, quantas pessoas lêem livros nacionais e quantas preferem os que vêm do lado de lá da América?

É realmente muito fácil dizer ter asco à cultura brasileira quando todos os setores ajudam para a formação desse pensamento. Vivemos cercados de reality shows que se tornam assunto nacional. Só encontramos livros bons, bonitos e baratos, quando são de lá. Os filmes que vamos ver nos cinemas são quase sempre americanos, já que o cinema nacional não tem público e nem incentivo. Quem vai pro norte do país quando ir a Miami é mais barato?

Vamos pensar um pouco: Quem gosta mesmo de Baião? E Lady Gaga quantos gostam? Quem já leu Caio Fernando Abreu e quem já leu Crepúsculo? Quantos comem vatapá e quantos preferem uma comidinha na Starbucks? De maneira alguma eu quero levantar a bandeira do patriotismo. Mas será que se em todos os países o incentivo à cultura nacional fosse maior, os americanos ainda representariam grande parte da alegria existente neste mundo?

Não acho que ninguém é obrigado a gostar de nada, mas se nos interessássemos pela nossa cultua da mesma forma que nos interessamos pela norte americana, talvez as coisas corressem melhor por aqui...E quem sabe um dia, os brasileiros representem grande parte da alegria existente no Brasil?

segunda-feira, 8 de março de 2010

LEO E O SUPER-HOMEM

Georgina Martins

Quando cheguei ao cemitério percebi que ela suspirou aliviada. De certo pensava que eu não iria e inventara várias desculpas para explicar minha ausência. Lívia e Alex estavam lá desde cedo. Como eu não me aproximava do corpo, mamãe me pegou pela mão e me levou até ele: “O Leo sempre foi assim, não gosta de cemitérios...” Desconcertada, tentava transformar minha indiferença em medo da morte; entretanto, sabia que eu não estava triste.

O cheiro forte das flores, que cobriam o corpo de papai, me embrulharam o estômago e tive de sair duas vezes para vomitar. Mamãe aproveitou para dizer a todo mundo o quanto eu estava chocado com a morte dele: “O Leo sempre foi muito ligado ao pai, acho que é por isso que os dois brigavam tanto.”

O excesso de calor e as pessoas se amontoando me deixaram agoniado. Avisei à mamãe que ia sair para fumar. Sem graça, ela se justificava dizendo que eu estava muito pálido, que precisava de ar fresco e de um pouco de sal embaixo da língua. Com um lenço simulou enxugar as lágrimas que desejava ver saírem dos meus olhos. Do lado de fora, Lívia e Alex conversavam com dois amigos de papai. Para evitar manifestações de pêsames, dei um jeito de não ser visto por eles. Eu queria que aquilo tudo acabasse logo.

O corpo inerte de papai, enfeitado com aquelas flores amarelas, me fez lembrar de minhas brincadeiras de infância com as bonecas de Lívia. Na verdade, as lembranças começaram a surgir quando ele ainda estava no hospital, imóvel naquela cama metálica e fria. Suponho que a imobilidade dele nutria as minhas lembranças. Mamãe havia me orientado a suspender a cama quando ele acordasse: “É para que seu pai possa sentir-se um pouco melhor, deitado assim, fica parecendo mais doente. Nem precisei levantar a cama, pois durante o tempo em que fiquei no quarto ele não acordou.

Quando sai do hospital, ainda estava vivo, mas sem a força daquele homem que tantas vezes me fizera tremer de pavor. Nunca percebi em seu olhar outro sentimento que não fosse de decepção, de raiva, e, muitas vezes, de nojo. Acho que ele me odiava.

Minha mãe dizia que não: “Seu pai só quer o seu bem, Leo, mas você não ajuda. Parece que gosta de brigar com ele.” Com Alex e com Lívia meu pai nunca brigava. Alex podia qualquer coisa e Lívia era a princesinha da casa. Era assim que ele a chamava.

Não me lembro muito bem em que Natal Lívia ganhou aquela boneca; faz muito tempo, mas da caixa grande, do papel de presente, dos cabelos compridos e da roupa colorida da boneca, não consigo esquecer. Para mim papai comprou um carrinho de controle remoto, que não lembro nem da cor, e pro Alex uma bola de couro.

Lívia não gostava de me emprestar suas bonecas e mamãe, por sua vez, fazia questão de dizer a mesma coisa todas as vezes que íamos a uma loja de brinquedos: “Já disse que meninos não brincam com bonecas. Você pode escolher o carrinho que quiser. Veja só este aqui, não é bonito? Igualzinho ao do Rafa”. Eu não queria nenhum, achava todos sem graça, inclusive o Rafa, que só sabia brincar de futebol e de guerra. E depois, fazer o que com mais um carrinho?

Quando brincávamos de casinha, Lívia deixava que eu fosse a mãe, mas só às vezes, porque ela queria ser sempre a mãe, mas eu não gostava de ser o pai. Mamãe nunca entendeu, mas pelo menos não me batia, só avisava: “Leonardo, já falei que vocês não podem aborrecer seu pai, o médico disse que ele não pode ficar nervoso”. Nessas horas, eu virava Leonardo, Leo era só quando estava tudo bem, quando meu pai estava calmo.

Alex, de vez em quando, também brincava com as bonecas de Lívia, mas papai não brigava. Alex gostava de jogar bola. Todos os domingos acordavam cedo e iam para o futebol: ele e papai. Voltavam na hora do almoço, suados e felizes. Eu tinha inveja e nojo. Alex adorava futebol e papai adorava o Alex.

“Você sabe muito bem que a culpa de seu pai ser assim com você é toda sua, Leo. Cansei de repetir sempre a mesma coisa: Menino pára de falar fino! Anda igual homem! Não balança as mãos assim! Toma Jeito de gente! Meu filho, você já está com 10 anos, não é mais nenhum bebê.”, mamãe falava isso todo dia, mas eu não podia segurar minhas mãos, tampouco sabia falar ou andar de outro jeito. Na verdade, eu não queria ser de outro jeito, gostava de ver minhas mãos dançando no ar enquanto falava, e de andar com leveza, como se flutuasse ou desfilasse em uma imensa passarela. Gosto até hoje.

“Meu filho, por favor, você precisa mudar esse seu jeito; é por causa dele que os meninos riem de você na escola. Sua professora já conversou comigo sobre isso, ela diz que você não colabora; que provoca os meninos com esse seu modo de andar e de falar. Depois que eles implicam você fica chorando. Ah, meu filho, desse jeito você vai sofrer muito na vida. Falo isso porque não quero que você sofra.”

Eu odiava aquela escola: “O Leo é veado, olha como ele fala, olha como ele anda. Veadinho, vem cá, vem...”, era assim que o Victor falava. Eu o achava o mais odioso de todos os meninos. “O Leo não tem pintoooooooooo! , ele é mulherzinhaaaaaaaaaaa!”.

Um dia Victor propôs aos meninos que tirassem o meu short. “Vocês vão ver só como ele não tem pinto”. Meu pai chegou na hora para me buscar. Apanhei tanto, que mamãe teve de colocar compressas de gelo nas manchas roxas.

Agora, eram as mãos de papai que estavam roxas; a enfermeira falou da dificuldade em pegar a veia dele. Não fiquei muito no hospital, só mesmo o tempo de mamãe ir em casa e voltar. Não gosto de ver sangue, e depois papai estava inconsciente, nem havia se dado conta da minha presença.

Quando o Alex brincava com a gente, ele era sempre o médico e Lívia insistia para que eu fosse o pai: “Tá bom, tá bom, vou ser o pai, mas vou ficar em casa com as bonecas, tá? Você vai ser a mãe que trabalha fora. (— Doutor, o que é que a minha filhinha tem? Vamos, filhinha, a mamãe já vai chegar, não chora!).”

Em uma dessas brincadeiras papai entrou no quarto sem que percebêssemos; eu estava fazendo um vestido para Diana, um vestido de baile. Ela teria ficado linda se ele não tivesse rasgado tudo. Até os cabelos dela meu pai arrancou. Lívia chorou muito. Eu só chorei quando ele me esbofeteou: “Seu filho da puta, você quer virar veado? Você é homem, ouviu? É homem! Eu já disse isso mil vezes pra você: Você é homem! Você é homem! Entendeu, Leonardo? Homem, homem! Nunca mais quero ver você brincando com bonecas, ouviu bem?” Papai estava transtornado, pensei que fosse me matar. Mamãe, assustada, tentava me proteger: “Pára, Sílvio, você não está vendo que a Diana é a namorada do Leo? Ele gosta de brincar de namorar as bonecas de Lívia, não é meu filho? É por isso que ele brinca com elas.”

Papai olhou espantado, até eu fiquei surpreso com a desculpa que minha mãe acabara de inventar. Ele saiu do quarto vermelho de raiva.

Naquele tempo eu tinha muitos pesadelos. Sonhava sempre com um monstro que queria nos devorar, a mim e a Diana. Depois sonhava com homens que se transformavam em monstros. Uns homens enormes, muito maiores que meu pai, e eu acordava suado.

— Compra carrinhos pra esse menino, Ester, chega de livros, tem muitos livros nessa casa. Esse menino lê demais, e isso faz até mal. É por isso que ele é assim. Depois não adianta chorar sobre o leite derramado. Seu filho vai virar veado!

Papai falava isso sempre, por isso fiquei surpreso no dia em que ele entrou em casa com aqueles três pacotes. Eram presentes, e todos para mim. Bonecos: um Batmam, um Homem-Aranha e um Super-Homem

Tome Leo, é seu, pode brincar com eles à vontade, você não gosta tanto de brincar com bonecas? Então, agora têm bonecos que são próprios para meninos brincarem. O moço da loja me disse que os filhos dele adoram esses bonecos. Você não acha que eles são bonitos? Você vai emprestá-los pro Alex, Leo?

Papai falava sem parar, mas de um jeito carinhoso como ele nunca havia falado comigo antes.

Ansioso, entregou-me os bonecos como quem receitava um poderoso remédio capaz de curar o que ele julgava ser uma moléstia grave e contagiosa. Era mais uma de suas inúmeras tentativas de me transformar em homem. No homem que ele desejava que eu fosse.

Na primeira semana brinquei com todos os bonecos, Alex também. Depois dei o Homem Aranha e o Batmam para ele, menos meu Super-Homem, o boneco mais forte de todos, mais do que o Alex, mais do que os monstros do meu sonho e muito mais do que papai.

Meu super-homem tinha uma capa vermelha e podia voar. Com ele eu viajava para os lugares mais bonitos, bem longe daquela casa, bem longe de meu pai. Diana foi esquecida, largada em um canto, sem roupas e sem cabelos. Papai, feliz, me deixou em paz. Convencera-se de que havia finalmente me transformado em um macho. Nunca mais me bateu.

Antes que fechassem o caixão, olhei pela última vez o corpo daquele homem coberto por flores amarelas. Ali, imóvel, tive a certeza de que, ainda que eu brincasse com todas as bonecas do mundo, ele nunca mais poderia me bater.

Agora era eu quem suspirava aliviado, havia chegado ao fim o nosso tormento: o meu e o dele. Só me arrependo de não ter tido tempo e coragem para lhe contar que o seu antídoto se convertera em veneno: o boneco que aquietara o atormentado coração de meu pai havia se transformado no meu primeiro namorado, e que depois dele vieram outros e fora os que ainda virão. Queria ter contado também que o meu super-homem mora comigo até hoje.