LEO E O SUPER-HOMEM
Georgina Martins
Quando cheguei ao cemitério percebi que ela suspirou aliviada. De certo pensava que eu não iria e inventara várias desculpas para explicar minha ausência. Lívia e Alex estavam lá desde cedo. Como eu não me aproximava do corpo, mamãe me pegou pela mão e me levou até ele: “O Leo sempre foi assim, não gosta de cemitérios...” Desconcertada, tentava transformar minha indiferença em medo da morte; entretanto, sabia que eu não estava triste.
O cheiro forte das flores, que cobriam o corpo de papai, me embrulharam o estômago e tive de sair duas vezes para vomitar. Mamãe aproveitou para dizer a todo mundo o quanto eu estava chocado com a morte dele: “O Leo sempre foi muito ligado ao pai, acho que é por isso que os dois brigavam tanto.”
O excesso de calor e as pessoas se amontoando me deixaram agoniado. Avisei à mamãe que ia sair para fumar. Sem graça, ela se justificava dizendo que eu estava muito pálido, que precisava de ar fresco e de um pouco de sal embaixo da língua. Com um lenço simulou enxugar as lágrimas que desejava ver saírem dos meus olhos. Do lado de fora, Lívia e Alex conversavam com dois amigos de papai. Para evitar manifestações de pêsames, dei um jeito de não ser visto por eles. Eu queria que aquilo tudo acabasse logo.
O corpo inerte de papai, enfeitado com aquelas flores amarelas, me fez lembrar de minhas brincadeiras de infância com as bonecas de Lívia. Na verdade, as lembranças começaram a surgir quando ele ainda estava no hospital, imóvel naquela cama metálica e fria. Suponho que a imobilidade dele nutria as minhas lembranças. Mamãe havia me orientado a suspender a cama quando ele acordasse: “É para que seu pai possa sentir-se um pouco melhor, deitado assim, fica parecendo mais doente.” Nem precisei levantar a cama, pois durante o tempo em que fiquei no quarto ele não acordou.
Quando sai do hospital, ainda estava vivo, mas sem a força daquele homem que tantas vezes me fizera tremer de pavor. Nunca percebi em seu olhar outro sentimento que não fosse de decepção, de raiva, e, muitas vezes, de nojo. Acho que ele me odiava.
Minha mãe dizia que não: “Seu pai só quer o seu bem, Leo, mas você não ajuda. Parece que gosta de brigar com ele.” Com Alex e com Lívia meu pai nunca brigava. Alex podia qualquer coisa e Lívia era a princesinha da casa. Era assim que ele a chamava.
Não me lembro muito bem em que Natal Lívia ganhou aquela boneca; faz muito tempo, mas da caixa grande, do papel de presente, dos cabelos compridos e da roupa colorida da boneca, não consigo esquecer. Para mim papai comprou um carrinho de controle remoto, que não lembro nem da cor, e pro Alex uma bola de couro.
Lívia não gostava de me emprestar suas bonecas e mamãe, por sua vez, fazia questão de dizer a mesma coisa todas as vezes que íamos a uma loja de brinquedos: “Já disse que meninos não brincam com bonecas. Você pode escolher o carrinho que quiser. Veja só este aqui, não é bonito? Igualzinho ao do Rafa”. Eu não queria nenhum, achava todos sem graça, inclusive o Rafa, que só sabia brincar de futebol e de guerra. E depois, fazer o que com mais um carrinho?
Quando brincávamos de casinha, Lívia deixava que eu fosse a mãe, mas só às vezes, porque ela queria ser sempre a mãe, mas eu não gostava de ser o pai. Mamãe nunca entendeu, mas pelo menos não me batia, só avisava: “Leonardo, já falei que vocês não podem aborrecer seu pai, o médico disse que ele não pode ficar nervoso”. Nessas horas, eu virava Leonardo, Leo era só quando estava tudo bem, quando meu pai estava calmo.
Alex, de vez em quando, também brincava com as bonecas de Lívia, mas papai não brigava. Alex gostava de jogar bola. Todos os domingos acordavam cedo e iam para o futebol: ele e papai. Voltavam na hora do almoço, suados e felizes. Eu tinha inveja e nojo. Alex adorava futebol e papai adorava o Alex.
“Você sabe muito bem que a culpa de seu pai ser assim com você é toda sua, Leo. Cansei de repetir sempre a mesma coisa: Menino pára de falar fino! Anda igual homem! Não balança as mãos assim! Toma Jeito de gente! Meu filho, você já está com 10 anos, não é mais nenhum bebê.”, mamãe falava isso todo dia, mas eu não podia segurar minhas mãos, tampouco sabia falar ou andar de outro jeito. Na verdade, eu não queria ser de outro jeito, gostava de ver minhas mãos dançando no ar enquanto falava, e de andar com leveza, como se flutuasse ou desfilasse em uma imensa passarela. Gosto até hoje.
“Meu filho, por favor, você precisa mudar esse seu jeito; é por causa dele que os meninos riem de você na escola. Sua professora já conversou comigo sobre isso, ela diz que você não colabora; que provoca os meninos com esse seu modo de andar e de falar. Depois que eles implicam você fica chorando. Ah, meu filho, desse jeito você vai sofrer muito na vida. Falo isso porque não quero que você sofra.”
Eu odiava aquela escola: “O Leo é veado, olha como ele fala, olha como ele anda. Veadinho, vem cá, vem...”, era assim que o Victor falava. Eu o achava o mais odioso de todos os meninos. “O Leo não tem pintoooooooooo! , ele é mulherzinhaaaaaaaaaaa!”.
Um dia Victor propôs aos meninos que tirassem o meu short. “Vocês vão ver só como ele não tem pinto”. Meu pai chegou na hora para me buscar. Apanhei tanto, que mamãe teve de colocar compressas de gelo nas manchas roxas.
Agora, eram as mãos de papai que estavam roxas; a enfermeira falou da dificuldade em pegar a veia dele. Não fiquei muito no hospital, só mesmo o tempo de mamãe ir em casa e voltar. Não gosto de ver sangue, e depois papai estava inconsciente, nem havia se dado conta da minha presença.
Quando o Alex brincava com a gente, ele era sempre o médico e Lívia insistia para que eu fosse o pai: “Tá bom, tá bom, vou ser o pai, mas vou ficar em casa com as bonecas, tá? Você vai ser a mãe que trabalha fora. (— Doutor, o que é que a minha filhinha tem? Vamos, filhinha, a mamãe já vai chegar, não chora!).”
Em uma dessas brincadeiras papai entrou no quarto sem que percebêssemos; eu estava fazendo um vestido para Diana, um vestido de baile. Ela teria ficado linda se ele não tivesse rasgado tudo. Até os cabelos dela meu pai arrancou. Lívia chorou muito. Eu só chorei quando ele me esbofeteou: “Seu filho da puta, você quer virar veado? Você é homem, ouviu? É homem! Eu já disse isso mil vezes pra você: Você é homem! Você é homem! Entendeu, Leonardo? Homem, homem! Nunca mais quero ver você brincando com bonecas, ouviu bem?” Papai estava transtornado, pensei que fosse me matar. Mamãe, assustada, tentava me proteger: “Pára, Sílvio, você não está vendo que a Diana é a namorada do Leo? Ele gosta de brincar de namorar as bonecas de Lívia, não é meu filho? É por isso que ele brinca com elas.”
Papai olhou espantado, até eu fiquei surpreso com a desculpa que minha mãe acabara de inventar. Ele saiu do quarto vermelho de raiva.
Naquele tempo eu tinha muitos pesadelos. Sonhava sempre com um monstro que queria nos devorar, a mim e a Diana. Depois sonhava com homens que se transformavam em monstros. Uns homens enormes, muito maiores que meu pai, e eu acordava suado.
— Compra carrinhos pra esse menino, Ester, chega de livros, tem muitos livros nessa casa. Esse menino lê demais, e isso faz até mal. É por isso que ele é assim. Depois não adianta chorar sobre o leite derramado. Seu filho vai virar veado!
Papai falava isso sempre, por isso fiquei surpreso no dia em que ele entrou em casa com aqueles três pacotes. Eram presentes, e todos para mim. Bonecos: um Batmam, um Homem-Aranha e um Super-Homem
— Tome Leo, é seu, pode brincar com eles à vontade, você não gosta tanto de brincar com bonecas? Então, agora têm bonecos que são próprios para meninos brincarem. O moço da loja me disse que os filhos dele adoram esses bonecos. Você não acha que eles são bonitos? Você vai emprestá-los pro Alex, Leo?
Papai falava sem parar, mas de um jeito carinhoso como ele nunca havia falado comigo antes.
Ansioso, entregou-me os bonecos como quem receitava um poderoso remédio capaz de curar o que ele julgava ser uma moléstia grave e contagiosa. Era mais uma de suas inúmeras tentativas de me transformar em homem. No homem que ele desejava que eu fosse.
Na primeira semana brinquei com todos os bonecos, Alex também. Depois dei o Homem Aranha e o Batmam para ele, menos meu Super-Homem, o boneco mais forte de todos, mais do que o Alex, mais do que os monstros do meu sonho e muito mais do que papai.
Meu super-homem tinha uma capa vermelha e podia voar. Com ele eu viajava para os lugares mais bonitos, bem longe daquela casa, bem longe de meu pai. Diana foi esquecida, largada em um canto, sem roupas e sem cabelos. Papai, feliz, me deixou em paz. Convencera-se de que havia finalmente me transformado em um macho. Nunca mais me bateu.
Antes que fechassem o caixão, olhei pela última vez o corpo daquele homem coberto por flores amarelas. Ali, imóvel, tive a certeza de que, ainda que eu brincasse com todas as bonecas do mundo, ele nunca mais poderia me bater.
Agora era eu quem suspirava aliviado, havia chegado ao fim o nosso tormento: o meu e o dele. Só me arrependo de não ter tido tempo e coragem para lhe contar que o seu antídoto se convertera em veneno: o boneco que aquietara o atormentado coração de meu pai havia se transformado no meu primeiro namorado, e que depois dele vieram outros e fora os que ainda virão. Queria ter contado também que o meu super-homem mora comigo até hoje.
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