quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A morte não tem pressa e nem é urgente. Sabe ela que tudo tem sua hora e que ninguém morre de véspera.
Mas meu pai quis ir logo. A morte se sentiu um pouco sem graça de alguém afrontá-la daquela forma, mas, não discutiu e aceitou o pedido dele.
É que a morte percebeu que era um sacrifício, um de amor, algo grande mesmo. Ela percebeu que ele queria ir para que seu filho pudesse começar a conhecê-lo; coisa que com ele vivo seria impossível, já que ele teimava em se esconder sem querer.
A morte levou o pedido do meu pai bem a sério, e percebeu, já faz um tempo, que no fundo, no fundo, estava na hora dele ir.

Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar

Seu Olhar

Seu Olhar

Foi na madugrada fria
que reparei:
do incêndio, da alegria,
eu já não sei.

Madrugada, ainda há fumaça,
cinzas no ar-
e um vazio no seu olhar!

Madrugada, e em todo canto
mostra-se a dor:
essa luz que invade a sala
é o fim do amor.

Madrugada, e, mesmo agora,
queria ver
o segredo que eu sabia
ver em você

Esse espelho que não quebra,
pra nosso azar,
só guardou a madrugada
desse lugar

Sei da hora, é madrugada
mas quis cantar
o abandono, o silêncio
do seu olhar.

Luiz Henrique da Costa

Queria

Queria

Queria que você quisesse,
que você tivesse aquilo que me falta;
queria a alegria e o fogo,
na cama, no corte dessa noite alta.

Mas você não tem, nem quer,
meu bem, meu mal-me-quer,
você não quer, não tem.

Chega a madrugada
e eu volto ao mesmo dia,
aqui, nesse lugar:
tudo vazio no seu olhar

Tua fome não sacia a minha fome,
Tua boca ficou fria.
Queria que a minha sede fosse a tua
e a tua febre fosse a minha

Mas você não quer comer,
você não quer beber,
prefere ficar sem;
não, você não quer suar,
você não quer se dar,
você não quer ninguém.

Queri que você ficasse,
que você se fosse, de uma vez, para sempre.
Vocênão fica e não vai,
não desocupa a moita,
mas não me quer mais.

E se você não quer, não tem;
eu quero outro alguém:
o amor é coisa urgente.
Se você não me quer mais, se afaste,
que pra mim já deu,
pra mim, agora, basta.


Luiz Henrique da Costa

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Da cadeira de balanço, ela, toda velha, observou o primeiro raio de sol se esconder por trás da cortina puída. Vendo isso, olhou para o lado e percebeu que seu jasmim estava morrendo junto com ela. Estava na hora.
Papai sempre foi muito difícil. Uma dificuldade desconhecida, daquelas que pesquisadores ainda não conseguem entender. O ser-difícil dele foi transformando as pessoas que viviam junto dele, principalmente a pessoa que me pertence. Depois que conheci meu pai, como pai, decidi que não queria mais ter uma figura paterna; e esse desejo não se fazia por conta de castigos absurdos ou opiniões contraditórias, mas se fez pelo fato de que, na minha cabeça, filho não deve ter medo de pai. Eu tinha.
O medo que sentia do meu pai era algo grande, maior que o próprio Luiz. Nunca consegui superar aquele medo, só substituí por uma raiva. A raiva foi crescendo dentro de mim com o passar da poeira, veio lenta de início e quando eu percebi ela já tinha sobrepujado a grandeza do medo.
A raiva me fez viver um pai por obrigações: Ligava por obrigação, elogiava por obrigação, tudo me era obrigado, nada por prazer. Eu entendia que ele tinha lá seus problemas, mas ao invés de ajudar eu preferi viver por mais um tempo com a minha raiva, minha dor, meu medo, meu rancor...
De alguma forma papai criou uma ligação entre nós, mesmo deixando claro que eu era o menos querido. Essa ligação me fez perceber, e na hora certa, que estava chegando o momento em que ele precisaria partir para o Nosso Lar, debaixo da terra, Céu, Inferno, Paraíso, Nirvana, ou qualquer lugar do gênero. Eu sabia que ele tinha que morrer, tava na hora mesmo, senti com a mesma certeza que sinto que irei morrer antes de minha mãe.
Não entendo ainda a morte de papai, é complicado porque a diferença entre a distância dele e a morte são poucas. Ele sempre foi um pai de outro mundo, nunca próximo. Seu morrer só concretizou sua lonjura.
Depois que ele morreu não senti culpa, nem a raiva, nem o medo, nem mais nada. Só entendi que crescia uma pena enorme dentro de mim, uma pena boa, uma pena que iria consolar papai onde quer que ele fosse. A pena já deve estar com ele a essa altura...
Felicidade eu realmente só encontrei em horinhas que ele se descuidava, quando vivo; porque hoje sinto uma felicidade libertadora quase que culpada, por ter sido conquistada após a morte do meu quase e inteiro pai.
Já chorei tudo que tinha de chorar por todos os envolvidos no crime limpo suicída que foi a morte de papai. Já chorei demais. Agora só resolvi ficar cansado de sentir raiva ou medo das pessoas, é que realmente cansa. Agora a gente perdoa os erros e principalmente os acertos. Só entendi essa questão do perdão como substituição dos sentimentos que cansam, depois que soube que meu pai morreu sentindo orgulho de mim. Em sua última leitura, papai lia um artigo meu, só meu. Não conseguiu ler tudo e pediu para o irmão ler enquanto ele chorava de felicidade para esquecer a dor. O orgulho que eu sempre desejei ter no meio da minha imensa raiva, só veio depois de sua morte.
É que apesar dos pesares, por tudo que meu pai foi e fez, eu sempre quis, e continuo querendo, ser tão genial quanto ele. É que saber ser-difícil é coisa dos grandes...

sábado, 18 de dezembro de 2010

No momento em que escrevo isso as lágrimas cismam em me atrapalhar e não consigo pensar direito no que responder...

Apesar de muitas brigas e de todo o afastamento eu não consigo parar de pensar em você e de lembrar das vezes em que eu pedia para sairmos só nós dois para passear. Não consigo deixar de lembrar de algumas noites que ficavamos discutindo sobre tudo, letras de música, política, história. E choro ainda mais quando lembro que o homem que eu adimiro tanto e sempre quis ser, está longe de mim. Aquele homem que me fazia sorrir igual a um bobo, porque sabia de todos os segredos que a vida me escondia.

Não quero pensar em você como alguém ausente, como alguém distante, porque eu entendo os seus motivos e sei que no momento é melhor assim. Fico triste muitas vezes em saber que meu pai está sozinho e me vem uma vontade louca de sair correndo e ficar com ele. Não podia fazer isso, mas agora eu posso.

Eu ainda vejo os dias em que você brigava comigo, os dias em que você e o Ângelo me sacaneavam, o dia em que a gente tomava café juntos... Você é o homem que me ensinou a gostar de Caetano, Elza, Bethânia. O homem que me apresentou a esses deuses. E eu não posso ouvi-los sem lembrar de você, sem lembrar do "homem velho".

Não quero que isso seja assim, não precisa ser assim. Logo que eu resolver e fechar as minhas notas eu dou uma passada por aí.

Por favor, mande notícias.

Muitos beijos e abraços do seu filho que te ama muito, muito, muito.

Camilo Martins

PS: Não vou reler para corrigir os erros, se não eu choro de novo.

Em 19/11/2009 02:14, Luiz Henrique da Costa <> escreveu:


Lulo, meu amor,

vi o recado e o depoimento que deixou pra mim no Orkut, mas quis responder por e-mail pra não deixar à vista de todo mundo. E estou respondendo com cópia pro Milo porque o que tenho a dizer vale pra os dois.

Não sei como fazer pra dar uma idéia do tamanho da saudade que sinto de vocês. Não é uma saudade só de ver, é de viver com vocês, de ver todo dia, o dia todo; de saber como foram na escola, na brincadeira, no passeio; é saudade de ir à escola com vocês, de levar, de ir buscar, de passear junto, até de brigar de vez em quando; é saudade de ver vocês crescendo, de ver que iam crescendo junto de mim e que eu ia envelhecendo sendo seu pai; saudade de contar histórias à noite, de ler pra vocês e de brincar com vocês antes de dormirem; saudade de fazer comidinhas, de preparar lanchinhos básicos, de cantarmos juntos, de poder mostrar discos e canções pra vocês; é saudade de tudo. Amo vocês mais do que tudo e mais do que todos no mundo, e sempre foi muito doído ir até aí pra ficar só um pouquinho. Doía muito, mas eu ia assim mesmo, e dava um jeito de disfarçar a tristeza na hora de vir embora. Mas ultimamente ficou pior. Começou a ficar mais difícil disfarçar a tristeza e a insatisfação com a distância entre nós, e algumas coisas entre mim e sua mãe começaram a ficar ainda mais difíceis do que já eram. Daí que eu sumi por um tempo. E acho que vou continuar sumido enquanto as coisas não melhorarem, enquanto eu não me sentir melhor, enquanto eu não puder, pelo menos, ter um lugar onde ficar quando estiver no Rio -- um lugar onde eu possa ficar com vocês, se quiserem, se puderem ficar comigo.

Mas meu sumiço não é falta de amor, não, viu? Não é mesmo. Muito pelo contrário.

Beijo,

Luiz Henrique da Costa