quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Os doces e seu menino
Um menino caminha chutando pedrinhas.
Sabe bem da grandeza do caminho
E bem por isso caminha sozinho.
Enquanto as pedras chutadas forçam lembranças,
De um passado-futuro,
O menino se adimira e se cansa,
Com as imagens do presente no escuro.
Próximo ao meio do fim do caminho
O pequeno já não se vê sozinho.
Segue ladeado por outros pequenos
Que assim como ele
Também são meninos.
Quando chega à porta da loja,
Nossa criança se excita e se toca:
Que suas lembranças já estão quase mortas,
E seus doces açúcares estão caminhando
(também sozinhos)
Por outra estrada torta.
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Infância
Eu botava ela no caminho.
A deixava miudinha
Pro chão não ficar sozinho.
Se eu tivesse uma folinha
Eu cobria os olhos dele.
Para que ela, tão miudinha,
Não prendesse minhalma nele.
Se eu tivesse uma gotinha
Eu a fingia de lágrima.
Pois como ela é miudinha
Limparia meus olhos dágua.
Se eu tivesse uma paixão
Iria guardar essas miudezas.
Porque tudo ficaria grandão
E aumentariam as incertezas.
Para o príncipe encantado, o namorado eterno sem namoro: André.
sábado, 25 de setembro de 2010
Lágrimas Negras(e/ou)Por parte de pai
de lágrimas,
Ela virou e quase gritou.
Mas um grito surdo.
Chorado mesmo:
É muito triste saber que ele não existe mais.
A existência do não existir ainda é difícil
Para o homem, para mim, para minha mãe...
E para o único protagonista da história.
Aquele que ainda tem medo da imortalidade criada.
Ela ficou triste pelas férias da existência.
Eu fiquei magoado com a mentira do Mautner.
É que no caixão,
Os poços de petróleo de meu pai,
Não tinham mais luz. Nem mesmo a negra.
"São poços de petróleo/ A luz negra dos seus olhos"
sábado, 18 de setembro de 2010
Estrela da vida inteira
Ele pegou essa estrela na mão.
Depois de muito olhar ele percebeu,
Que aquela era a estrela da vida inteira.
A estrela que eu achei pra me acompanhar,,
Igual aquela que Manuel usou,
Não é da vida inteira.
Porque ela cisma em me viver pela metade,
Não se doou por inteira até agora.
Não sei se essa estrela um dia será inteira pra mim.
[Ou pra ela
Não sei também se essa será minha estrela da vida inteira.
Mas por enquanto,
Enquanto não passa o próximo cometa.
Eu aceito viver pela metade com ela.
Toda vermelha
Quando criança, ninguém me assoprou no ouvido
Como fizeram com a Drika.
Quando criança eu ouvi uma história.
Quando criança eu contava:
Era uma vez um lago.
Mas um lago muito distante.
No meio desse lago tinha uma flor,
Uma flor rosa toda vermelha
Os ouvintes de mim quando criança
Riam,
Riam demais até eu não conseguir mais contar.
Não sei como a história termina.
Não sei aonde foi parar a flor...
O perfume
Chegara bem antes do combinado, sempre fazia assim. Não conseguia chegar muito perto do horário marcado, parecia que ele preferia se machucar olhando as horas passarem lentamente até chegar ao horário dos seus encontros.
Foi direto para a livraria, só lá ele encontrava um meio de amenizar sua agonia, sua angústia, sua ansiedade. Andou por todos os lados do espaço, vasculhou todas as estantes, folheou alguns livros bobos e riu das bobeiras que leu.
Chamou um atendente e perguntou sobre o primeiro título que veio na cabeça. Não queria ler, só precisava se distrair, enganar o seu coração, para que ele não gritasse tanto perguntando pelo outro. O atendente demorou muito para encontrar o livro, mas o achou.
Quando pegou no livro, só conseguiu ler um conto maravilhoso de Antonio Carlos Viana; porque, enquanto seus olhos mastigavam as letras, a sua cabeça imaginava coisas e seu coração perturbava com perguntas: Será que ele vai gostar da gente? Será que ele é bonito mesmo? E se ele não vier? Olhe a hora, ele não vem mais, pode apostar.
Segurou-se para não gritar, se não chamaria a atenção dos clientes e assustaria os livros. Fechou o livro e ficou andando por ali tentando afastar as imagens inventadas e as perguntas bestas. Não conseguiu.
O celular tocou uma vez, e com as mãos tremendo conseguiu atender. Era ele, dizendo que chegaria logo. Puxa, ele iria, não tinha mentido. Para sua surpresa, as perguntas aumentaram e as imagens voltaram com toda a força, não queriam se acalmar.
Precisou comprar uma água para relaxar, estava tenso demais, não conseguia se conter. Bebeu a água em um gole só, e mesmo assim ainda estava nervoso. O horário estava estourando ele ainda não tinha aparecido.
Enquanto olhava para além do vidro da porta, passou perto dele um rosto conhecido, ele então virou-se para ver se era mesmo ele, mas pensou que era só mais uma besteira criada pela sua cabeça. Ignorou. Insistiu com a imagem e olhou de novo; sim era ele. Sua cabeça não mentia tanto assim. Sorriu involuntariamente, e seu sangue pareceu ferver de alegria quando pode abraçar aquele corpo.
Era tão lindo, tão doce, tão tímido, tão cheiroso. Não poderia estar ali, não com ele. Sentiu uma vontade enorme de beijá-lo na frente de todos, mas conteve-se, sentiu uma vontade enorme de apertar sua mão, mas conteve-se, queria sentir melhor o seu cheiro, mas conteve-se.
Enquanto a história se apresentava para os dois, ele só pensava em olhar para aquele rosto que sustentava duas lentes que brilhavam no escuro. De vez em quando puxava assunto, não por educação, mas para poder ouvir a voz dele mais um pouquinho. Só para ter certeza de que estava do lado dele, com ele, ouvindo ele, só ele. Não conseguia sentir mais nada, além do perfume maravilhoso que aquele corpo exalava. Parecia querer provocar.
A história terminou mal, e no fim só conseguiu alguns toques dele. Mas ao se despedirem, ele deixou um presente. Deixou com que ele ficasse para sempre, com a lembrança do seu cheiro.
Feliz natal
Na casa de dona Maria estava uma correria só. Seus filhos e netos não paravam de ir de um lado ao outro, enlouquecidos com os preparativos do natal. Dona Maria nem conseguia pensar em nada, o ensopado estava tomando conta de toda a sua atenção; aquele vapor que vinha da panela a estimulava a mexer mais e mais, como se seu o braço fosse uma máquina. A panela de dona Maria já estava meio velha, mas o ensopado do natal não poderia ser em outra panela, tinha de ser naquela, que já estava amassada de tanta lembrança. Naquele momento Maria mexia não só o ensopado, mas como suas memórias, guardadas há trinta anos. E talvez seja por causa dessa mistura que Maria não conseguira pensar em mais nada, já não conseguia mais distinguir uma lembrança da outra, estava tudo igual dentro da panela.
Depois que estava tudo quase pronto e as crianças corriam ansiosas com o brilho mágico que vinha dos embrulhos proibidos de presente; dona Maria mandou todos se sentarem a mesa, por os talheres, o peru, seu ensopado e suas lembranças na mesa. Depois que seus filhos e netos ocuparam a mesa, todos perceberam que um lugar estava vago. Nesse momento começou um burburinho e dona Maria permaneceu quieta e elegante. Derramou algumas lágrimas, mas não movia um músculo sequer.
O marido de dona Maria tinha morrido no ano passado, e todos os filhos tomaram um enorme cuidado para não pregar essa peça na pobre senhora. A peça de deixar um lugar vago como se Jorge fosse beber e comer novamente com sua família. Como se ele estivesse ali para rir. Como se eles estivesse ali para contar piada. Como se ele estivesse ali para comer o ensopado.
A filha mais velha foi então pegar um remédio na vizinha para baixar a pressão da mãe. A dona Lurdes atendeu a porta com um sorriso maravilhoso e não reclamou em ceder um de seus comprimidos. A vizinha fechou a porta e voltou para a sua ceia em família. Quer dizer, ceia entre amigos. Todo ano era assim: Lurdes só chamava para cear os seus amigos de anos, e era naquele momento feliz em que eles contavam tudo um para o outro. Todos os segredos iam embora antes da sobremesa. Esqueciam a idade que tinham e agiam como um clube secreto da época de criança de cada um.
Sem tirar o seu lindo sorriso do rosto, dona Lurdes disse que ia até o banheiro bem rapidinho e já voltava. Deixou então, os seus amigos na sala e foi até o banheiro. Lurdes lavou o rosto, lavou a mão e secou tudo com muito zelo, depois olhou para o espelho e viu o seu lindo sorriso refletido. Naquele momento ela lembrou do quanto a sua vida era desinteressante, do quanto já mentira para seus amigos naquele momento solene, só para ver se assim fazia com que a sua vida parecesse mais bonita. Não que ela mentisse ou exagerasse, mas por uma corzinha em um relato sobre compras, sobre viagens, sobre espetáculos, não fazia mal a ninguém. Ou fazia? Era isso que incomodava a pobre Lurdes, ter de mentir para quem não precisava disso. Aquele sorriso foi então minguando, minguando, minguando, até que se transformou em choro, um choro maior que o de dona Maria. Um choro quieto, mas um choro forte, um choro sofrido.
Enquanto Lurdes escondia mais um segredo em seu banheiro, o interfone tocava desesperadamente pedindo para ser atendido. Lurdes então se recompôs muito rápido e saiu com o seu sorriso maravilhoso no rosto para atender o interfone.
Do outro lado da linha falava dona Elsa, uma de suas amigas, dizendo que não poderia comparecer a ceia de dona Lurdes porque estava muito indisposta. Qual nada! Lurdes sabia que Elsa nunca aparecera a uma reunião de natal, sempre inventava alguma, sempre. Mas como sempre foi uma madame, dona Lurdes, lamentou horrores a ausência de dona Elsa e desligou o interfone desejando um bom natal.
Dona Elsa não fazia idéia do porque que ainda cismava em se justificar para Lurdes todo ano que não iria passar o natal com ela. Mas dane-se, Elsa já nem se preocupava mais com isso, ela estava começando com os seus preparativos, como todo ano. Pos na mesa a sua cadeira, abriu uma enorme caixa de bombons e abriu o seu melhor vinho. Olhou para o vinho e para os bombons e sorriu um pouco. Encheu uma taça, mergulhou um bombom no vinho, e o levou aos lábios com muita gula e luxúria. Lembrou-se então de suas amigas, daquelas pobres amigas. Soltou uma enorme gargalhada e abriu uma garrafa de cachaça, pos um pouco atrás da porta para o seu Exu e depois fez a mesma mistura que tinha feito com o vinho. E assim a noite se estendeu até seus bombons acabarem. Todos fadados a morte pela bebida de dona Elsa.
Quando deu três horas da manhã, Elsa levantou a sua taça no ar e desejou feliz natal a si mesma. Sempre estava feliz nesses momentos, sempre. Elsa não chorava nos natais por falta de família, ou por omitir segredos, não, não precisava disso. Elsa não precisava de ninguém, só de si, só do seu sorriso, dos seus momentos em paz. Não sentia falta de companhia porque nunca teve uma, então acabara se acostumando com a falta. E também não ligava para segredos, porque nunca se preocupara com o que os outros iam achar de sua vida, não usava máscaras, não. Mas ria à beça das máscaras das outras. Ria muito, até mesmo porque, o maior segredo de Lurdes, era a sua antiga paixão por ela; e antes de Jorge falecer, dormira com ele por quinze anos, bem debaixo do nariz de dona Maria. E sempre que o natal chegava, ela se deliciava com os segredos que tinha, com os que não tinha, com os bombons e com o seu vinho.
Depois de rir, e depois de chorar de tanto rir. Elsa se levantou, guardou as garrafas, comeu o último bombom e deu boa noite para o nada. Passou batom, pos o seu melhor vestido e deitou-se muito bem arrumada. Afinal, já era natal.
A culpa foi dele
Sentei-me na poltrona que outrora fora vermelha. Ahhh! E que vermelho lindo era aquele que cobria a poltrona, um vermelho vivo, sangue quente, tinta, vermelho como aquela boca que um dia beijei.
A janela estava aberta e a varanda se encontrava coberta por um manto de folhas secas, parecia um palácio decadente, uma morada saqueada, um templo que perdeu sua magia. Mas era assim que eu me sentia naquele lugar, naquela hora, ali.
Acendi um cigarro olhei um pouco para aquele fumo aceso, e ao sentir aquele cheiro, aquele cheiro de séculos, aquele cheiro de anos, aquele cheiro meu, que vinha do queimar do cigarro, ao sentir aquilo, senti nojo. Nojo de mim, do cigarro, das folhas, da poltrona, nojo.
Traguei um pouco do meu cigarro como se já não houvesse mais jeito e balancei um pouco o rolo de fumo em cima do cinzeiro, mas o fiz, sem a menor necessidade, simplesmente por fazer, por achar bonito, por me divertir com as cinzas que caiam leves e livres do cigarro, por rir à beça com os desenhos rebuscados e brincadeiras inteligentes que a fumaça fazia no ar.
Antes de voltar com o cigarro a boca, parei com ele no ar e olhei para fora da janela, para além da varanda, para dentro da janela do vizinho. Me levantei, fui até a varanda, ignorando a presença das folhas. Acho que as folhas devem ter ficado um pouco chateadas com a minha atitude, porque elas gritavam um estalar seco e sofrido sempre que meus pés as ignoravam.
Apaguei o cigarro na mureta da varanda, e lá o deixei. Passei os meus dedos por cima da mureta, como se quisesse pegar para mim, toda a poeira e cinzas que ele e o tempo haviam deixado para mim. Peguei a poeira em mãos, soprei um pouco e depois a fitei com muito ódio. Não sei que ódio eu sentia no momento, se era ódio de mim, dele, do que fiz, da poeira, do cigarro ou da poltrona. Mas sentia ódio, um ódio bom, um ódio quase perfeito que parecia trazer alguma felicidade após a morte dele.
Virei as costas para a mureta, para a janela vizinha, para a poeira e para os cigarros. Voltei para a sala e fiquei olhando para a velha poltrona como se a tal fosse uma coitada, uma pobrezinha abandonada pelo tempo.
Peguei um copo vazio na mesa de madeira, uma mesa antiga e muito bonita, que fora mesa de sítio, mesa de alegria, de festa, fartura e saudade. Olhei para o copo, e o pus contra a luz, para ver se estava sujo, enchi o copo com alguma coisa, não lembro o que. Enchi de nada.
Tomei um pouco daquela lembrança vazia, daquele esquecimento gordo, enchi a cara, fiquei bêbado de rancor, de ódio, de satisfação.
Eu amava aquele homem meu Deus, porque ele teve de ter feito aquilo comigo? Logo antes de morrer? Ele precisava mesmo ter se deleitado nas caricias de outro? Precisava sentir o calor de outro corpo? Precisava sorrir para outro rosto? Para outros olhos? Essa era verdade, a verdade que mais doía. Saber que ele se fora amando outro, deitando-se com outro, beijando outro. Saber que antes de morrer ele bebeu de outro corpo, saber que o café que ele tomou fora outro e não o meu, que o cigarro que ele fumou, fora outro e não o meu.
Não tinha como aceitar tudo aquilo, principalmente porque agora, a poltrona como em um gesto de revolta, me encarava com deboche, como se retribuísse o meu olhar de pena. Junto a ela o cigarro da mureta se virou contra mim e parecia gritar de ódio por eu tê-lo apagado na mureta, e também, junto a esse dois, o copo vibrava em minha mão, todos contra mim, uma revolta conjunta, uma revolução pelo o que fiz com eles.
Era mais fácil aceitar, acreditar, que os objetos renegados e abortados se revoltavam contra mim pelo o que fiz a eles. Mas não, não funcionava assim, eles se voltavam contra mim por outro motivo, um motivo bem maior, muito maior. Eles pediam vingança, pediam a minha cabeça em uma bandeja de prata, clamavam para que o corpo dele, daquele homem que o meu amor matou, fosse vingado. Pediam a todas as forças do universo, para que eu, fosse morto, como matei aquele que eu amava.
O mar
Cheguei na hora certa, bem no momento mais bonito do dia para nós dois, a hora crepuscular. Andava de vagar, aproveitando a areia que coçava o meu pé com o seu calor natural. Acho que naquela hora eu estava chorando, devia estar sim, mas agora, eu não lembro, não faço idéia do que escorria dos meu olhos.
Comecei olhando o mar, que surpreendentemente estava calmo naquele fim de tarde. Acho que o mar tinha serenado só por causa daquele acontecimento. No momento em que fitava o mar, a minha mão apertou fortemente a caixinha de madeira que trazia em mãos. Quase senti a madeira quebrar de tão vagabundo que era o material, mas não pude pegar outra caixinha, ele gostava muito dessa, gostava mesmo.
Parei no meio do caminho, olhei para os lados e vi aquela pedra, justo aquela pedra coberta de mato em que nós sentávamos para observar o sol se por. E ficávamos ali, até a hora que um de nós caísse no sono. Desviei o olhar para cima e chorei um pouco; sim, dessa vez eu realmente chorei.
Continuei andando até chegar à beira do mar, recuei quando vi que a água iria tocar meus pés, mas, no momento em que a água, a insistente onda tocou os meus pés, eu relaxei um pouco e me deixei levar por aquele fluxo tranqüilo e gelado.
Olhei para o mar, com um curioso olhar de pena, nem sei o porquê daquele olhar, mas ele simplesmente saiu de mim e encontrou as ondas. Nessa onda de pena que saia de mim, vi algo passar pelas águas, pensei que fosse um peixe vazio, ou uma garrafa nadando, mas não, era apenas um lembrança perdida; uma triste lembrança esquecida. Era ele jogando água em mim, rindo à beça, enquanto eu o cobria de algas e ria mais ainda.
Andei um pouco para trás diante daquela lembrança. Como é que uma lembrança pode ser assim tão cruel? Por que ela tinha a necessidade de fazer aquilo comigo? Justo naquela hora? Para que? Qual o fundamento? Naquele instante, meu olhar penoso se transformou em uma raiva enorme, raiva do mar, da lembrança, e principalmente raiva dele, o maior culpado por tudo aquilo, a razão de todo o meu rancor.
Chorei de novo, só que dessa vez um pouco mais intensamente, pude até sentir o calor salgado das lágrimas descendo pelo meu rosto. Passei o dedo por cima de uma lágrima, como se a quisesse pegar e perguntar o porquê daquilo tudo, o motivo de ela ter saído de mim assim, com toda essa audácia, como se achasse que pudesse sair de mim sem pedir, como se fosse dona de si, dona da própria umidade.
Mas não, não consegui me irritar com a pobre lágrima, simplesmente a ignorei, e acho que no fundo a compreendi. Deixei para lá.
Enfrentei o mar. Entrei o mais fundo que pude, esquecendo que tinha roupas, esquecendo que existia. Nesse momento, o mar se acalmou por completo, como se fosse um piscina de magoas, disposta a receber mais uma, a minha.
Abri a caixinha, sorri involuntariamente, chorei mais um pouco e ri à beça de tudo aquilo. Tirei forças de não sei aonde. Acho que do carinho que recebi de minha mãe, dos sorrisos que ele me dava de presente, enfim, tirei forças. E com essas poderosas forças, levantei nos ares a caixinha, e espalhei no mar suas cinzas, para que ele pudesse morar agora com Iemanjá, com Netuno, com os peixes, ou que simplesmente, ele pudesse lembrar daquela água, daquele mar, daquela praia, que nos viu crescer, que nos juntou, que nos amou, que nos serviu de base, para viver, amar e morrer.
Chiove
Desviei lentamente meu olhar das gotas competidoras, eu sentia que ainda queria vê-las, mas não podia, precisava voltar a fitar a linha do trem, para ver se aquele trem, especialmente aquele trem, iria voltar.
Ah! Como era linda a ferrugem dos trilhos, como me fazia sorrir aquela ferrugem doce que o tempo construiu tão minuciosamente; era lindo.
No momento em que olhava para a grama do outro lado da linha, vi naquele instante, um pequeno garoto, descalço, só de short, correndo de mãos dadas com um menino em uma tarde linda, que quase explodia com a felicidade dos garotos. O garoto menor, era eu e o maior era ele. Nós corríamos feitos loucos naquela época, como se nada, nada mesmo pudesse nos parar ou atingir. Mas nunca desgrudávamos as nossas mãos, eu acho até hoje que a magia da nossa correria estava na junção de nossos dedos, na mistura do suor, nos apertões involuntários na palma do outro.
Uma gota surgiu em baixo de meu olho, não sei se era uma lágrima ou se era uma gota vencedora da disputa pela lembrança melhor. Sei que pouco me importei com a presença úmida do corpo estranho e continuei fitando as minha memórias se desenharem na grama, na linha, na plataforma, no chão.
Continuei ali, rindo à beça, sozinho; eu, minhas lembranças e a chuva. Foi ai que voltou o que eu torcia para não voltar. Voltou rasgando, matando e socando, aquela lembrança de quando ele precisou ir embora, de quando ele subiu no trem, de quando ele, jovem, dizia que iria voltar, assim que terminasse tudo, só para poder me ver, para poder correr comigo, para poder me bater, para poder gritar comigo, para nos sujarmos.
Naquele instante em que ele subiu no trem, ele beijou a minha mão e sussurrou algo que hoje eu traduzo como: Eu te amo. Mas tanto faz, isso já faz tanto tempo não é? Deve fazer dois meses, um ano, dois, talvez trinta. Não importa, o que importa é que eu, passo todos os dias por aqui, para ver os garotos correndo, para ver o sol nascer, para ver as pessoas embarcando, para ver as flores nascendo, para ver as gotas disputando, para ver minhas lágrimas, para ver a grama, a linha, a plataforma; simplesmente para ver se assim, só assim, ele volta para mim.
Dona Cândida
Era sempre a mesma coisa na casa de dona Cândida, de manhã cedo era para todos estarem acordados. Fazia questão de bater panela na porta do meu quarto. “Acorda seu vagabundo! Na minha casa tem que obedecer as minhas regras ouviu?”. Já fazia um tempo que eu resolvera ignorar os ataques da dona Cândida, afinal, ela já estava velha, era normal ficar chata e implicante.
Já fazia dois anos que eu alugava aquele quartinho da velha, não agüentava mais aquele inferno, sorte que eu era paciente. Meus amigos sempre falavam: “Velha tem que morrer em asilo, não sei por que você ainda agüenta.” Talvez fosse por pena ou por preguiça mesmo, nunca fui de fazer escândalos. Até mesmo porque, o quartinho era jeitosinho e tinha uma circulação de ar boa, não tinha muito para reclamar. Só as vezes que apareciam umas infiltrações, mas mesmo resmungando muito, dona Cândida consertava.
Levantei quase meio dia com o escândalo da velha e passei por ela ignorando os ataques e o olhar mal humorado. Fui fazer meu café. Depois de tomar um pouco de café saí, com a velha ainda no meu ouvido, e fui procurar algum emprego. Conseguia enganar dona Cândida dizendo que era empregado, afinal eu sempre tinha dinheiro para pagar o aluguel, nunca atrasei. É que tinha o dinheiro da herança né? Como eu quase não gastava, ainda dava para agüentar um pouquinho mais. Pedro só reclamava “Porra com o dinheiro dessa herança você podia alugar um apartamento para você. Porque ainda mora com essa velha?” Nunca soube responder, talvez fosse por pena, ou por preguiça mesmo.
Andei por horas na rua procurando alguém que se atrevesse a me empregar... Nada. Voltei para casa já era um pouco tarde, e dona Cândida estava vendo novela na sala. Entrei sem fazer barulho e fui direto pro meu quarto. Não se podia fazer barulho na hora da novela. Nunca. Comi uma banana e tomei um copo do suco da Cândida, mesmo que ela se irritasse depois.
Fui deitar e sem conseguir dormir comecei a olhar pro teto, imaginando as coisas que eu poderia ter, mas que nem fazia força para tê-las. Nunca fui muito ambicioso, sempre ficava contente com o que eu tinha e nunca fui de reclamar. Desde criança que os outros brigam comigo e se aproveitam de mim, nunca liguei muito, não me importava mesmo.
Acordei mais feliz do que nunca naquele dia. Não sabia o porquê daquilo. Não conseguia nem mesmo pensar nos gritos de dona Cândida. Estava muito feliz naquela manhã. “Que sorriso bobo é esse seu merda? Ta achando que pode rir da minha cara assim é? Pois vá tentando. Um dia ainda te ponho pra fora seu vagabundo.” Eu simplesmente ignorava toda a gritaria e o escândalo. Cheguei à cozinha com a velha atrás de mim ainda aos berros. Olhei ao meu redor procurando o filtro para fazer café. Sempre sorrindo, sem nem olhar para Cândida. Talvez isso deixasse a velha um pouco mais nervosa, talvez fosse por isso que ela gritava tanto naquele dia.
Não achei o café e acabei esbarrando em uma faca. Olhei para aquela faca de prata brilhante, bonita. Peguei a faca e fiquei olhando por um momento, sempre com um sorriso na cara e gritaria atrás. Virei para dona Cândida, dei “bom dia” e afundei a faca com gosto no seu coração. Afundei a faca da mesma forma que afundamos em uma manga suculenta, afundei com vontade. Depois que os gritos pararam e a velha fechou os olhos de vez, eu lavei minhas mãos, achei o filtro e fui fazer meu café.
Até hoje não sei por que demorei tanto para matar a pobre dona Cândida. Talvez fosse por pena ou por preguiça mesmo.
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Alva
Foi nascida em outras bandas.
Descalçou suas crenças miúdas
Caminhando no silêncio Encantado.
Seus dedos murchos de tão Alvos
Limpou, sem tocar, as lágrimas do menino moço.
Assim viveu, de observar as coisas pequeninas.
Morreu para sempre, Alvina.
sábado, 4 de setembro de 2010
Despedida de início
Vai doer um pouco talvez, sempre dói mudar de dor. Sempre é necessário.
Posso ainda me fazer presente de carne e espírito, mas talvez eu não consiga me fazer de vida.
Sentido ou não, feliz ou não, arrependido ou não, querido, eu pulei fora. Pode ficar com o que sobrou de mim. E ao menos cuide bem disso, me faz falta...muita falta.