sábado, 18 de setembro de 2010

Dona Cândida



Era sempre a mesma coisa na casa de dona Cândida, de manhã cedo era para todos estarem acordados. Fazia questão de bater panela na porta do meu quarto. “Acorda seu vagabundo! Na minha casa tem que obedecer as minhas regras ouviu?”. Já fazia um tempo que eu resolvera ignorar os ataques da dona Cândida, afinal, ela já estava velha, era normal ficar chata e implicante.
Já fazia dois anos que eu alugava aquele quartinho da velha, não agüentava mais aquele inferno, sorte que eu era paciente. Meus amigos sempre falavam: “Velha tem que morrer em asilo, não sei por que você ainda agüenta.” Talvez fosse por pena ou por preguiça mesmo, nunca fui de fazer escândalos. Até mesmo porque, o quartinho era jeitosinho e tinha uma circulação de ar boa, não tinha muito para reclamar. Só as vezes que apareciam umas infiltrações, mas mesmo resmungando muito, dona Cândida consertava.
Levantei quase meio dia com o escândalo da velha e passei por ela ignorando os ataques e o olhar mal humorado. Fui fazer meu café. Depois de tomar um pouco de café saí, com a velha ainda no meu ouvido, e fui procurar algum emprego. Conseguia enganar dona Cândida dizendo que era empregado, afinal eu sempre tinha dinheiro para pagar o aluguel, nunca atrasei. É que tinha o dinheiro da herança né? Como eu quase não gastava, ainda dava para agüentar um pouquinho mais. Pedro só reclamava “Porra com o dinheiro dessa herança você podia alugar um apartamento para você. Porque ainda mora com essa velha?” Nunca soube responder, talvez fosse por pena, ou por preguiça mesmo.
Andei por horas na rua procurando alguém que se atrevesse a me empregar... Nada. Voltei para casa já era um pouco tarde, e dona Cândida estava vendo novela na sala. Entrei sem fazer barulho e fui direto pro meu quarto. Não se podia fazer barulho na hora da novela. Nunca. Comi uma banana e tomei um copo do suco da Cândida, mesmo que ela se irritasse depois.
Fui deitar e sem conseguir dormir comecei a olhar pro teto, imaginando as coisas que eu poderia ter, mas que nem fazia força para tê-las. Nunca fui muito ambicioso, sempre ficava contente com o que eu tinha e nunca fui de reclamar. Desde criança que os outros brigam comigo e se aproveitam de mim, nunca liguei muito, não me importava mesmo.
Acordei mais feliz do que nunca naquele dia. Não sabia o porquê daquilo. Não conseguia nem mesmo pensar nos gritos de dona Cândida. Estava muito feliz naquela manhã. “Que sorriso bobo é esse seu merda? Ta achando que pode rir da minha cara assim é? Pois vá tentando. Um dia ainda te ponho pra fora seu vagabundo.” Eu simplesmente ignorava toda a gritaria e o escândalo. Cheguei à cozinha com a velha atrás de mim ainda aos berros. Olhei ao meu redor procurando o filtro para fazer café. Sempre sorrindo, sem nem olhar para Cândida. Talvez isso deixasse a velha um pouco mais nervosa, talvez fosse por isso que ela gritava tanto naquele dia.
Não achei o café e acabei esbarrando em uma faca. Olhei para aquela faca de prata brilhante, bonita. Peguei a faca e fiquei olhando por um momento, sempre com um sorriso na cara e gritaria atrás. Virei para dona Cândida, dei “bom dia” e afundei a faca com gosto no seu coração. Afundei a faca da mesma forma que afundamos em uma manga suculenta, afundei com vontade. Depois que os gritos pararam e a velha fechou os olhos de vez, eu lavei minhas mãos, achei o filtro e fui fazer meu café.
Até hoje não sei por que demorei tanto para matar a pobre dona Cândida. Talvez fosse por pena ou por preguiça mesmo.

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