sábado, 18 de setembro de 2010

A culpa foi dele



Sentei-me na poltrona que outrora fora vermelha. Ahhh! E que vermelho lindo era aquele que cobria a poltrona, um vermelho vivo, sangue quente, tinta, vermelho como aquela boca que um dia beijei.
A janela estava aberta e a varanda se encontrava coberta por um manto de folhas secas, parecia um palácio decadente, uma morada saqueada, um templo que perdeu sua magia. Mas era assim que eu me sentia naquele lugar, naquela hora, ali.
Acendi um cigarro olhei um pouco para aquele fumo aceso, e ao sentir aquele cheiro, aquele cheiro de séculos, aquele cheiro de anos, aquele cheiro meu, que vinha do queimar do cigarro, ao sentir aquilo, senti nojo. Nojo de mim, do cigarro, das folhas, da poltrona, nojo.
Traguei um pouco do meu cigarro como se já não houvesse mais jeito e balancei um pouco o rolo de fumo em cima do cinzeiro, mas o fiz, sem a menor necessidade, simplesmente por fazer, por achar bonito, por me divertir com as cinzas que caiam leves e livres do cigarro, por rir à beça com os desenhos rebuscados e brincadeiras inteligentes que a fumaça fazia no ar.
Antes de voltar com o cigarro a boca, parei com ele no ar e olhei para fora da janela, para além da varanda, para dentro da janela do vizinho. Me levantei, fui até a varanda, ignorando a presença das folhas. Acho que as folhas devem ter ficado um pouco chateadas com a minha atitude, porque elas gritavam um estalar seco e sofrido sempre que meus pés as ignoravam.
Apaguei o cigarro na mureta da varanda, e lá o deixei. Passei os meus dedos por cima da mureta, como se quisesse pegar para mim, toda a poeira e cinzas que ele e o tempo haviam deixado para mim. Peguei a poeira em mãos, soprei um pouco e depois a fitei com muito ódio. Não sei que ódio eu sentia no momento, se era ódio de mim, dele, do que fiz, da poeira, do cigarro ou da poltrona. Mas sentia ódio, um ódio bom, um ódio quase perfeito que parecia trazer alguma felicidade após a morte dele.
Virei as costas para a mureta, para a janela vizinha, para a poeira e para os cigarros. Voltei para a sala e fiquei olhando para a velha poltrona como se a tal fosse uma coitada, uma pobrezinha abandonada pelo tempo.
Peguei um copo vazio na mesa de madeira, uma mesa antiga e muito bonita, que fora mesa de sítio, mesa de alegria, de festa, fartura e saudade. Olhei para o copo, e o pus contra a luz, para ver se estava sujo, enchi o copo com alguma coisa, não lembro o que. Enchi de nada.
Tomei um pouco daquela lembrança vazia, daquele esquecimento gordo, enchi a cara, fiquei bêbado de rancor, de ódio, de satisfação.
Eu amava aquele homem meu Deus, porque ele teve de ter feito aquilo comigo? Logo antes de morrer? Ele precisava mesmo ter se deleitado nas caricias de outro? Precisava sentir o calor de outro corpo? Precisava sorrir para outro rosto? Para outros olhos? Essa era verdade, a verdade que mais doía. Saber que ele se fora amando outro, deitando-se com outro, beijando outro. Saber que antes de morrer ele bebeu de outro corpo, saber que o café que ele tomou fora outro e não o meu, que o cigarro que ele fumou, fora outro e não o meu.
Não tinha como aceitar tudo aquilo, principalmente porque agora, a poltrona como em um gesto de revolta, me encarava com deboche, como se retribuísse o meu olhar de pena. Junto a ela o cigarro da mureta se virou contra mim e parecia gritar de ódio por eu tê-lo apagado na mureta, e também, junto a esse dois, o copo vibrava em minha mão, todos contra mim, uma revolta conjunta, uma revolução pelo o que fiz com eles.
Era mais fácil aceitar, acreditar, que os objetos renegados e abortados se revoltavam contra mim pelo o que fiz a eles. Mas não, não funcionava assim, eles se voltavam contra mim por outro motivo, um motivo bem maior, muito maior. Eles pediam vingança, pediam a minha cabeça em uma bandeja de prata, clamavam para que o corpo dele, daquele homem que o meu amor matou, fosse vingado. Pediam a todas as forças do universo, para que eu, fosse morto, como matei aquele que eu amava.

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